quarta-feira, fevereiro 11, 2004

Rapariga

A Rapariga. Pesam-lhe os anos que não tem; a droga, a fome, a morte, a outra face do mundo, tudo passou por ela, menos o amor (esse, nem vê-lo, quanto mais senti-lo). Procurou em mim um carinho especial, e muito de algo que nem eu nem ninguém lhe poderá dar, momentos que já perderam a vez de serem, sensações que lhe foram vedadas, vê na televisão a família que nunca teve e por quem chora, delicia-se com as fábulas que lhe contam e imagina, antes de se render à amargura da crua realidade que a rodeia.

Deixara a droga e a outra face do mundo era cada vez menos ela... mas estava tudo lá dentro (impossível deixar para trás toda uma vivência, um "gigante adormecido" que não encontra David que o abata). Contudo, tudo parecia melhor.

Hoje, percorri as ruas da Alta. À procura dela. Sem querer mostrar, tinha o coração nas mãos. A raiva e os impropérios que lhe dirigia procuravam resposta, não a encontravam, perdidos na noite eram reflexo do nojo que tenho de um mundo que deixa que as pessoas sofram o que ela sofreu, e que batam fundo como ela bateu. Para cima e para baixo, entre ruelas, deixando os bares e as livrarias perdidas em que me perco para trás, estas ruas, que tanto valor têm, com mil histórias de estudante embrenhadas nas frinchas das paredes e nas pedras das calçadas, sinto-as frias agora, vazias e desprovidas de sentimento. Perco-me uns segundos a olhar para a Sé Velha, lembro-me mais uma vez de pedir ao Luís que me mande as fotos da Alta.

Encontro-a nas escadas; no meio de beatas e garrafas partidas, faz parte do cenário. Está bem. Estará? A cara não mente. Rendida outra vez ao álcool e à droga, e ao outro lado do mundo, desta vez não quer ajuda, não deseja ser ajudada. Quer que a deixem em paz, resignada. Quer odiar quem a ama, mas não consegue. Não (n)os olha directamente, tem medo que as lágrimas lhe dissolvam o disfarce. Há batalhas que só cada um pode travar. E enquanto ela preferir a Noite, e o lidar com a hipocrisia e o Falso, tão previsíveis e que lhe dão a segurança de saber a cada momento com o que pode contar, ninguém a pode ajudar. Não quer lutar para ser alguém de Dia, contenta-se em ser Rainha. Dos Malditos. Vou-me embora. Chegou mais droga. A cara pesada alegra-se, ela sabe para onde caminha.

E ao longe, quando me virei, podia jurar, voavam dois anjos negros sobre ela.